quinta-feira, 19 de setembro de 2013

ENTRE FEZES E ÁGUA

Bom, como o Presidente Jacob ampliou as fronteiras da nossa memória até o primário e ginásio, me atrevo a contar mais uma história.
E também porque li o nome do ilustre colega Henrique Ustra Soares, o qual não participou da OPA, mas estará na nossa comemoração. 
Não é justo que ele permaneça impune. 

ENTRE FEZES E ÁGUA 

O alvoroço era grande na turma do anexo de madeira.
Como já disse o Presidente Jacob, eram três salas mas éramos uma turma só. 
As portas ficavam abertas, e seguidamente havia um, dois, três ou quatro alunos passeando pelo corredor (acho que varanda define melhor aquele corredor aberto, com piso de sarrafo de madeira), fingindo que ia ao banheiro e fazendo tráfico de informações.
Cada um especulava do seu jeito e o ti-ti-ti corria solto!
Seria a nossa primeira aula de Química, e a professora era nada mais nada menos que a esperada musa das “propriedades periódicas da tabela de Mendeleiev”: Dona Gláucia Ustra Soares.
Temida, competente, respeitada, e muito chique! E além de tudo, para nossa inveja mortal, madrinha ou amiga pessoal do Asdrúbal.
A primeira aula da Prof. Gláucia era famosa! Rezava a lenda que ela sempre surpreendia os alunos com alguma pegadinha.
Todos esperavam ansiosos, cabeças e corpos para fora da sala.
Quando ela apareceu no final do corredor, correria geral! 
Como por encanto as peças do quebra-cabeça humano se encaixaram e num segundo estávamos todos sentados nas nossas carteiras, eretos, perfilados e em silêncio.
Ela entrou majestosa, chiquérrima, pisando firme e macio.
Cumprimentou a todos e depositou sobre a mesa de madeira (ainda era madeira!) dois vidros tampados: um marrom e outro com um líquido cristalino.
Disse que naquela aula iria nos dar a chave para a compreensão de todo o aprendizado da Química.
Silêncio total, respirações compassadas, olhos bem abertos, curiosidade!
Todos queriam saber o que estava por vir!
Apontou para o vidro marrom e disse: este vidro contém fezes.
Murmúrio geral! Ânsia de vômito, bocas torcidas!
Apontou para o outro vidro e disse: este contém água limpa.
Alívio!
Achamos que ela iria fazer alguma alquimia inusitada: fezes + água = a alguma explosão de gases fétidos????
Nada!
Calmamente, ela agitou o conteúdo de cada vidro com um pauzinho apropriado e disse: “Agora eu vou colocar o meu dedo no vidro com água” .
E assim ela fez. Depois, colocou o dedo na boca e confirmou: sim, é água pura!
Nós continuávamos imóveis, com os olhos arregalados.
O que viria agora????
E ela continuou com a lição: “Agora eu preciso conferir se no outro vidro tem fezes mesmo. Na química, a checagem dos dados é vital. Cheirar não basta. Alguém se habilita a fazer a mesma coisa que eu fiz com o vidro de água?”
Silêncio, respiração parada, olhos esbugalhados. Ninguém!
“Então eu mesma vou conferir.”
Petrificados!!!!
Ela colocou o dedo no vidro com fezes, levou-o à boca e solenemente degustou o conteúdo.
“Sim, são fezes”, disse ela.
Desfalecemos!!!!
Alguns vomitaram silenciosamente no estojo de canetinhas.
Nem por um segundo nos passou pela cabeça questionar nada!
Ela limpou as mãos em um imaculado pano branco e convidou um dos alunos ( provavelmente, tenha sido um dos exibidos que sentavam na primeira classe) a cheirar o conteúdo para tirar a prova. Mas ele recusou.
E Dona Gláucia continuava chique e segura, apesar de ter acabado de dar uma boa lambida em um dedo cheio de fezes.
Então, disse ela, alguém é capaz de dizer como eu fiz isso?
Aí a turma desparalisou e cuspimos as mais estapafúrdias hipóteses: misteriosas e complexas reações químicas de síntese, decomposição ou de simples troca!
Mas ninguém acertou!
A aula já estava chegando ao fim e a Cirilinha já ia tocar a sineta!
E Jacob ainda não havia criado a Sirmonele!
Nossa curiosidade era maior que o nojo! Queríamos saber.
Solenemente, ela saiu de trás da mesa de madeira e falou: fiquem pensando, que amanhã eu revelo.
Frustração!!!
Sempre elegante, pegou seu material e foi dar aula para a outra turma. Que também esperava em ebulição.
Alguns, durante a aula, já haviam se arrastado até a outra sala pela passagem secreta (uma tábua de madeira solta no chão da sala de aula) sorrateiramente, para comunicar o que estava acontecendo.
Então, o rebuliço era geral!
Ficamos o dia inteiro elucubrando sobre o segredo de Dna. Gláucia!
O recreio foi um verdadeiro evento, com discussões e apostas calorosas!
Na verdade, ela só desvendou o mistério no dia seguinte, depois de ter dado aula e feito a mesma demonstração para as três turmas.
“Querem saber a verdade? A verdade é que nenhum de vocês tem a qualidade mais importante para ser um bom químico: a observação!”
“Se tivessem observado corretamente, teriam percebido que eu coloquei um dedo no vidro e chupei o outro!”
Risos, indignação, surpresa???? Fácil! Agora todo mundo fingia que já imaginava isso!
E no recreio, com o rabo entre as pernas, cabisbaixos e murchos, mudamos de assunto e não se fala mais nisso!
Seguindo o discurso do Presidente: Mais que barbaridade!
Christina Trevisan

11 comentários:

  1. Chris
    Sensacional
    Comecei a ler e a aula passou na frente dos meus olhos, nos mínimos detalhes, é a mais pura verdade.
    Nunca gostei muito de química mas não esqueci dessa primeira aula nunca, algumas vezes já comentei com amigos esse fato.
    Grande lembrança!!!!!!!!!

    Engº Aldo Luiz Grassi

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  2. Isto ai Chris, grande lembrança
    Estou encaminhando ao Henrique e Glaucia

    bj
    Enio Krum

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  3. A professora de química anterior à Dna. Gláucia.
    Era bem mais velha, tinha sido colega do meu pai nos inícios do Maria Rocha.
    Já tentei lembrar do nome, mas só lembro da fisionomia.

    Christina Trevisan

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  4. Muito bom Chris!
    Qual foi a profª que fez uma experiência com enxofre e deixou todo o anexo "perfumado"?

    Abraço
    MHelena

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  5. Chris, muito bom.
    Abração
    Luis Carlos Werberich

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  6. Chris,
    Concordo com o Aldo, excelente história, mas ainda bem que não estava nessa aula, pois é muita merda para uma só aula.

    Jacob

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  7. Aldo,
    Que bom que alguém vive para confirmar a minha memória!
    Aula inesquecível! Bjs. da Chris

    Christina Trevisan

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  8. Chris maravilhosa! Amei o texto! Quantos talentos para a arte das palavras que eu desconhecia!!! Vocês estão de parabéns pelos belíssimos e primorosos escritos que são preciosos registros de uma época inesquecível.
    Aguardo o próximo! E que isso continue depois do encontro!
    Beijos gerais.
    Vera Pinheiro

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  9. Talvez esses talentos sejam resultado das aulas intensas de Português e Redação com a Prof. Nadir. Lembra?
    E do amor que nossos pais e professores despertaram em nós pela leitura e literatura!
    Sim! vamos continuar depois do encontro!
    Novas histórias virão!
    Bjs.

    Christina Trevisan

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  10. Realmente, cada dia uma BELA surpresa!
    Brilhante, Cris!
    abs
    Gerry F. Corino

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  11. Muito bom, Chris!!!
    Contou bem legal a história. Eu não conhecia, e manteve até o final o mesmo suspense que Prof. Gláucia pretendeu.

    Abc,
    Marcelo Cóser

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